janeiro 02, 2023

Análise comparativa entre os contos "Amor" de Clarice Lispector e "Olhos D'água" de Conceição Evaristo.

 



Este estudo tem por objetivo a realização de uma análise comparativa entre as obras “Amor” de Clarice Lispector e "Olhos d’água" de Conceição Evaristo, a fim de estabelecer quais as diferenças e semelhanças entre os nexos temáticos abordados nos contos. Para a fundamentação teórica, serão utilizadas as obras: “No raiar de Clarice Lispector” de Antônio Cândido, “A narração desarvorada” de Benedito Nunes, “O drama da linguagem: uma leitura de Clarice Lispector” de Benedito Nunes “Literatura Afro-brasileira, um conceito em construção” de Eduardo de Assis Duarte e “A memória coletiva” de Maurice Halbwachs.

 

O conto “Amor” está inserido na obra “Laços de Família”, que foi publicada em 1960. O conto é o relato de uma longa introspecção, no qual retrata um episódio trivial da vida de uma pessoa comum, que perante uma situação cotidiana, sofre uma epifania que traz profundas reflexões sobre si mesma e o mundo que a rodeia. O conto possui narração em terceira pessoa, com narrador onisciente, que tem acesso a emoções sentimentos e monólogos inteiros, apresentando “a vida introspectiva, num grau paroxístico que leva ao paradoxo na linguagem” (NUNES, 1989 p. 298).

 

Toda a trama gira em torno de Ana, a protagonista, uma mãe, esposa e dona de casa que ocupa o tempo cuidando de sua família e das tarefas domésticas. O conto apresenta outras personagens como o filho de Ana, o marido e o homem cego que ela enxerga através da janela do bonde, mas Ana é a única a quem a autora atribui uma densidade psicológica. Dessa forma, no decorrer do conto é possível acompanhar os vários estados de espírito de Ana, principalmente após ter uma epifania enquanto estava no bonde, a caminho de sua casa.

 

As obras de Clarice Lispector representam uma ruptura nas condições de produção literária, que é uma tendência na Literatura Brasileira no século XIX em diante: há uma tendência narrativa mais realista, assim como há também a construção de uma tensão do sujeito com o meio social. A crítica tecida por Antônio Cândido é justamente a de que, até então, faltava uma inovação na maneira de trazer essa relação da tensão entre o sujeito e o meio social, Cândido afirmava haver um “conformismo estilístico” no pensamento literário. (CANDIDO, p. 125). Para Cândido:

 

[...] Numa literatura, enquanto não se estabelecer um movimento de pensar efetivamente o material verbal; enquanto não se passar da afetividade e da observação para a síntese de ambos, que se processa na inteligência, não será possível encará-la do ângulo das produções feitas para permanecer [...] Para que a literatura brasileira se torne grande, é preciso que o pensamento afine a língua e a língua sugira o pensamento por ela afinado. Uma corrente dupla, de que saem as obras-primas e sem a qual dificilmente se chega a uma visão profunda e vasta da vida dentro da literatura. (1970, p. 126):

 

Clarice, não apenas transforma o sujeito em tensão, expandindo as formas de construir essas relações, mas difunde essa tensão no âmbito psicológico. Em “amor”, esses elementos podem ser notados no seguinte trecho:

 

Sua precaução reduzia-se a tomar cuidado na hora perigosa da tarde, quando a casa estava vazia sem precisar mais dela, o sol alto, cada membro da família distribuído nas suas funções. Olhando os móveis limpos, seu coração se apertava um pouco em espanto. [...] Saía então para fazer compras ou levar objetos para consertar, cuidando do lar e da família à revelia deles. Quando voltasse era o fim da tarde e as crianças vindas do colégio exigiam-na. Assim chegaria à noite, com sua tranquila vibração. De manhã acordaria aureolada pelos calmos deveres. Encontrava os móveis de novo empoeirados e sujos, como se voltassem arrependidos. (LISPECTOR, 1960, p. 11)

 

No trecho acima, é possível notar que há uma reflexão sobre a angústia cotidiana e a inquietação em meio a monotonia da rotina, acentuando o monocentrismo da narrativa e seu caráter introspectivo: “Sua precaução reduzia-se a tomar cuidado na hora perigosa da tarde [...]”, “seu coração apertava um pouco em espanto”; a “hora perigosa”, traz uma tensão e altera o estado de espírito da personagem. Essa hora refere-se ao momento em que encerramos as atividades banais que ressignificamos para que haja uma “aceitação”, mesmo que momentânea da vida que levamos; é o momento que temos uma pausa de todo o automatismo que a rotina nos envolve, e temos tempo para encarar tudo o que o (in)consciente reprime e dissipa ao ocuparmos as horas: o fardo que o gênero feminino nos impõe, sonhos que foram deixados para trás, frustrações, decepções, desejos e tudo o que toca no âmago da nossa existência.

 

Vale ressaltar, que a autora usa da prosopopeia, recurso poético que tem a finalidade de personificar seres inanimados; dessa forma, ao atribuir características humanas, como a capacidade de oferecer perigo, a hora parece ter vida própria. Assim, a “hora perigosa” chega como um fantasma, trazendo temores e ânsias, e o peso do vazio que sempre vai existir, por mais que ocupemos todas as horas de nossos dias, numa falha tentativa de fuga dessa verdade que nos atinge e muitas vezes, assombra. Usando de recursos poéticos, a obra apresenta reflexões profundas, “no qual parece abolir-se a distinção entre prosa e poesia [...]” (NUNES, 2004, p. 299) e que é narrada num “fluxo verbal contínuo, sucessão de fragmentos da alma e do mundo” (NUNES, 2004, p. 299).

 

Esses elementos psicológicos, quando apareciam anteriormente, eram apresentados através do narrador, para contar o que acontece interiormente e exteriormente, de maneira separada: a narrativa era interrompida, quando o interior ia ser revelado.

 

No conto de Clarice, os elementos psicológicos são apresentados do início ao fim da obra, através do fluxo de consciência, usando uma estratégia que mistura as narrações, não havendo assim, divisão de mundo interno e mundo externo: “No fundo, Ana sempre tivera necessidade de sentir a raiz firme das coisas. E isso um lar perplexamente lhe dera. Por caminhos tortos, viera a cair num destino de mulher, com a surpresa de nele caber como se o tivesse inventado.” (LISPECTOR, 1960, p. 11); “sentir a raiz firme das coisas” refere-se a como Ana dedica a sua vida em família e como busca manter a ordem e o controle das coisas.

 

Quando refere-se ao “destino de mulher”, Ana denuncia não se reconhecer mais na pessoa que fora antes de se casar; e que ao emergir do torpor da monotonia, descobre que “sem a felicidade se vivia” (LISPECTOR, 1960, p. 11), que em troca da “exaltação perturbada que tantas vezes se confundira com felicidade” (LISPECTOR, 1960, p. 11) da vida que vivera antes, havia sido substituída por uma “vida de adulto” em que, Ana assume uma responsabilidade por suas escolhas, mas reconhecendo que, apesar das escolhas, a ela era relegado um destino, uma função, um papel comum ao seu gênero.  Assim, as narrativas internas e externas são entrelaçadas, não fica claro quando o narrador está entrando no mundo interno da personagem.

 

É essa mistura de vozes que revoluciona a técnica narrativa da prosa brasileira, que segundo Cândido:   

A autora (ao que parece uma jovem estreante) colocou seriamente o problema do estilo e da expressão [...] Sentiu que existe uma certa densidade afetiva e intelectual que não é possível exprimir se não procurarmos quebrar os quadros da rotina e criar imagens novas, novos torneios, associações diferentes e mais fundamente sentidas. (CÂNDIDO, 1970, p. 128)

 

Em “Amor”, “a descoberta do cotidiano é uma aventura sempre possível, e o seu milagre, uma transfiguração que abre caminho para mundos novos.” (CÂNDIDO, 1970, p.128). Um traço comum que vale salientar nas personagens de Clarice, seria a “violência represada dos sentimentos primários e destrutivos – cólera, ira, raiva, ódio – que subitamente explodem.” (NUNES, 1989, p. 103):

 

Ele mascava goma na escuridão. Sem sofrimento, com os olhos abertos. O movimento da mastigação fazia-o parecer sorrir e de repente deixar de sorrir, sorrir e deixar de sorrir — como se ele a tivesse insultado, Ana olhava-o. E quem a visse teria a impressão de uma mulher com ódio. Mas continuava a olhá-lo, cada vez mais inclinada — o bonde deu uma arrancada súbita jogando-a desprevenida para trás, o pesado saco de tricô despencou-se do colo, ruiu no chão — Ana deu um grito, o condutor deu ordem de parada antes de saber do que se tratava — o bonde estacou, os passageiros olharam assustados. (LISPECTOR, 1960, p.12)

 

Após as compras do jantar, quando se preparava para retomar a rotina, a visão de um homem cego mascando chiclete, a leva a ter uma epifania: a imagem que faz parte da vida cotidiana causa em Ana um efeito estarrecedor, o que a leva a derrubar as compras. Ela observava o homem, com um olhar que “quem a visse teria a impressão de uma mulher com ódio” (LISPECTOR, 1960, p. 12) pois a simples existência desse homem cego, veio a confrontar a alienação costumeira de Ana, com o quão dura a vida pode ser, mostrando um sentimento primário de raiva e ressentimento. Esse momento quebra a barreira que Ana havia construído desde o casamento, colocando-a de frente com a vida e sua “falta de sentido”, mostrando que apesar de tentar, Ana jamais teria o controle das coisas. Em seu regresso a casa, permanece com a ânsia gerada pela epifania, de maneira que a vida que levava, deixava de ser aceitável e parecia um “modo moralmente louco de viver”:

 

A vida é horrível, disse-lhe baixo, faminta. O que faria se seguisse o chamado do cego? Iria sozinha... Havia lugares pobres e ricos que precisavam dela. Ela precisava deles... Tenho medo, disse. Sentia as costelas delicadas da criança entre os braços, ouviu o seu choro assustado. Mamãe, chamou o menino. Afastou-o, olhou aquele rosto, seu coração crispou-se. Não deixe mamãe te esquecer, disse-lhe. (LISPECTOR, 1960,p. 14)

 

Nesse trecho, Ana subverte o imaginário popular da palavra amor, que dá título ao conto, mostrando que

[...] esses sentimentos fortes e violentos, que polarizam a vida afetiva estão sujeitos a bruscas transformações. A cólera é o reverso do amor. Tormentoso, tirânico e maligno, o amor traz sempre uma “vontade de ódio”, e o ódio, uma vontade de amor. (NUNES, 1989, p. 103)

 

Mais tarde, a protagonista reflete sobre a sua família e recupera seu estado de alienação, recuperando a sensação de conforto habitual:

 

Riam-se de tudo com o coração bom e humano. As crianças cresciam admiravelmente em torno deles. E como uma borboleta, Ana prendeu o instante entre os dedos antes que ele nunca mais fosse seu. (LISPECTOR, 1960, p. 15)

 

O trecho anterior, marca mais uma vez o caráter poético da prosa de Clarice Lispector: “E como uma borboleta, Ana prendeu o instante entre os dedos antes que ele não fosse seu”, usando das figuras de linguagem, comparação e prosopopeia, o trecho mostra assim, que apesar da vida ser horrível as vezes, ainda é possível ver beleza no mundo, se afinarmos nosso olhar a delicadeza das coisas. Assim, tentava guardar em sua memória o momento que lhe trouxe alegria e segurança, aceitava a precariedade da vida, tomando consciência sobre a efemeridade de tudo que amava e se afunda novamente alienação costumeira: “Penteava-se agora diante do espelho, por um instante sem nenhum mundo no coração.”, deixando seu coração leve e dissipando da mente o enxergar de si mesma.

 

Conceição Evaristo é uma grande figura da literatura contemporânea, suas obras relatam a vivência de mulheres negras e as reflexões acerca das profundas desigualdades raciais brasileiras. Misturando realidade e ficção, suas obras trazem retratos do cotidiano, denúncias da desigualdade de gênero e raça, e também aborda a recuperação da ancestralidade da negritude brasileira. Citando Eduardo de Assis Duarte:

 

[...] não basta ser afrodescendente ou simplesmente utilizar-se do tema. É necessária a assunção de uma perspectiva e, mesmo, de uma visão de mundo identificada à história, à cultura, logo a toda problemática inerente à vida desse importante segmento da população. (2007, p. 12)

 

Este trabalho analisará sua obra “Olhos d’água”, em específico o primeiro conto que dá título ao livro. Publicado em 2014, o livro tem 116 páginas e é composto por 15 contos - são eles: Olhos d’água, Ana Davenga, Duzu-Querença, Maria, Quantos filhos Natalina teve? Beijo na face, Luamanda, O cooper de Cida, Zaíta esqueceu de guardar os brinquedos, Di lixão, Lumbiá, Os amores de Kimbá, Ei,Ardoca, A gente combinamos de não morrer e Ayoluwa, a alegria do nosso povo- onde, cada conto evidencia a violência urbana que atinge mulheres negras e expõe suas rotinas de miséria e exclusão social.

 

No título Olhos D’água, Conceição utiliza-se da imagem dos olhos para fixar um centro de poeticidade para a história, é por meio dessa imagem que se desperta na narradora as lembranças de sua dolorosa infância, relatando o sofrimento de uma mãe, negra e pobre, que fazia sacrifícios para cuidar dos filhos. A grande questão da filha era “qual a cor dos olhos de minha mãe” e é com base nesta dúvida, que o conto é construído. Narrado em primeira pessoa, a narradora-personagem é uma das sete filhas desta mulher: "Sendo a primeira de sete filhas, desde cedo busquei dar conta de minhas próprias dificuldades, cresci rápido, passando por uma breve adolescência." (EVARISTO, 2015, p. 16) 

 

Ao se relembrar e narrar suas memórias, a personagem acaba confundindo suas vivências com as lembranças de sua mãe:

 

[...] Às vezes, as histórias da infância de minha mãe confundiam-se com as de minha própria infância. Lembro-me de que muitas vezes, quando a mãe cozinhava, da panela subia cheiro algum. Era como se cozinhasse, ali, apenas o nosso desesperado desejo de alimento. (EVARISTO, 2015, p,16).

 

Conceição Evaristo reforça que a desigualdade social é um problema que acaba sendo herdado pelas gerações futuras. É possível dialogar com Maurice Halbwachs nessa fusão de memórias da narradora e de sua mãe, segundo Halbwachs, só nos lembramos daquilo que ainda faz sentido dentro do grupo social ao qual pertencemos no presente, só conservamos uma lembrança se ainda nos identificamos com este:

 

Não é suficiente reconstituir peça por peça a imagem de um acontecimento do passado para se obter uma lembrança. É necessário que esta reconstrução se opere a partir de dados ou de noções comuns que se encontram tanto no nosso espírito como no dos outro, porque elas passam incessantemente desses para aquele e reciprocamente, o que só é possível se fizeram e continuam a fazer parte de uma mesma sociedade. (1990, p. 34).

 

Comum na Obra de Conceição Evaristo, a herança da geração seguinte revela-se um traço aos seus ancestrais, como uma conexão estabelecida com passado e futuro que se concretiza no desfecho do conto, no momento em que em frente à filha a narradora brinca de buscar a verdadeira cor de seus olhos: 

 

[...] Hoje, quando já alcancei a cor dos olhos de minha mãe, tento descobrir a cor dos olhos de minha filha. Faço a brincadeira em que os olhos de uma são o espelho dos olhos da outra.  E um dia desses me surpreendi com um gesto de minha menina. Quando nós duas estávamos nesse doce jogo, ela tocou suavemente o meu rosto, me contemplando intensamente. E, enquanto jogava o olhar dela no meu, perguntou baixinho, mas tão baixinho como se fosse uma pergunta que para ela mesma, ou como estivesse buscando ou encontrando a revelação de um mistério ou de um grande segredo. Eu escutei quando, sussurrando, minha filha falou: Mãe, qual é a cor tão úmida de seus olhos? (EVARISTO, 2015, p.19)

 

Ainda sobre a busca de identidade, a narradora recorda das integrantes de sua família, e de sua ancestralidade desde a África:

 

Havia anos que eu estava fora de minha cidade natal. Saíra de minha casa em busca de melhor condição de vida para mim e para minha família: ela e minhas irmãs tinham ficado para trás. Mas eu nunca esquecera a minha mãe. Reconhecia a importância dela na minha vida, não só dela, mas de minhas tias e todas as mulheres de minha família. E também, já naquela época, eu entoava cantos de louvor a todas as nossas ancestrais, que desde a África vinham arando a terra da vida com suas próprias mãos, palavras e sangue. Não, eu não esqueço essas senhoras, nossas Yabás, donas de tantas sabedorias. (EVARISTO, 2015 p. 18)

 

A reflexão acerca da cor dos olhos de sua mãe é uma forma de buscar a identidade perdida da personagem, retornando a suas origens, somente descobrindo a cor dos olhos de sua mãe, a personagem conseguirá descobrir a si mesma. Uma das características marcantes no conto, é a poeticidade que se dá a partir da presença da imagem do olho, que vai se fortalecendo nas repetições, o que ocasiona as recordações da narradora de sua infância. É por meio da indagação “de que cor eram os olhos de minha mãe?” que Conceição fixa a imagem dos olhos como eixo da narrativa.

 

Com o uso da linguagem poética, a autora integra o aspecto da violência ao enredo, Conceição consegue apresentar cenas de profundo impacto aos leitores de uma forma “sutil”, com leveza em suas palavras, mas, mesmo com o uso deste “brutalismo poético” não se apaga as dificuldades e sofrimentos narrados pela personagem: “Era como se cozinhasse, ali, apenas o nosso desesperado desejo de alimento. [...]”  (EVARISTO, 2015, p.16).  A musicalidade também é um elemento importante no conto, como em: “Chovia, chorava! Chorava, chovia!” (EVARISTO, 2015, p. 18). Outro recurso estilístico utilizado no enredo, é a escrita que se baseia na hifenização das palavras, este recurso recebe o nome de palavras siamesas: “lava-lava” e “passa-passa” (p. 16). 

 

O tema central do conto "Olhos d’água " é a desigualdade social. A autora retrata situações que fazem parte do cotidiano da personagem, sendo esta a filha mais velha de sete irmãs, é implícito as responsabilidades que já assumia na infância: "Cresci rápido, passando por uma breve adolescência " (EVARISTO 2015 p. ?).  A alegria era um sentimento pouquíssimo conhecido: " Prenúncio de possíveis alegrias" (EVARISTO, 2015 p.). O enredo mostra que direitos básicos - como alimentação - eram negados a sua família: "[...] fervia panela cheia de fome [...]" (EVARISTO, 2015 p.), sendo assim, tece reflexões profundas sobre a desigualdade racial brasileira, e como esta é herdada de geração a geração. Mas, além das denúncias acerca da desigualdade, a autora não foca apenas em vitimizar a personagem, ela a torna protagonista de sua própria história, e se volta para a recuperação de sua ancestralidade da negritude a qual pertence:

 

A maior parte de qualquer presente é feita de passado. A história [...] é em grande medida continuidade. Faz parte de seu complexo peso material não poder ser constantemente remodelada. E, mesmo quando conseguimos transformá-la de fato, podemos perceber que seu peso repousa como um pesadelo no cérebro dos vivos (2006, p. 45).

 

Os pontos de referência do horizonte de Clarice Lispector são “autoconhecimento e expressão, existência e liberdade, contemplação e ação, linguagem e realidade, o eu e o mundo, conhecimento das coisas e relações intersubjetivas [...]” (NUNES, 1989, ) Ana simboliza a dona de casa de classe média, que assim como muitas mulheres, cumpre as expectativas sociais que são impostas por seu gênero: casar, ter filhos e cuidar dos afazeres domésticos; essas questões referentes a classe social e papéis de gêneros já pré-estabelecidos em sociedade, desvelam uma temática marcadamente existencial. No entanto esse relacionamento com o existencialismo sartriano não interfere diretamente nos aspectos que são peculiares de sua criação literária. (NUNES, 1989, p.100) Segundo Benedito Nunes:

 

[...] É existencial a temática que lhe serve de arcabouço. Mas o sentido global que essa totalidade significativa oferece já diverge – e largamente – quer da filosofia da existência centrada em torno da ideia da existência como realidade fáctica, quer do existencialismo propriamente dito [...] A divergência está na perspectiva mística que prevalece afinal e redimensiona os nexos temáticos formadores da concepção do mundo de Clarice Lispector – nexos que começam a ser repensados e desfeitos [...] onde a temática da obra reflui. (NUNES, 1989,  p. 100,101)

 

A imagem do cego mascando chiclete, de maneira mecânica e no escuro, parece uma metáfora para a forma alienada que Ana levava sua vida, repetindo uma rotina mecânica. Ao ter essa epifania, ela acaba então, quebrando essa rotina, e por um tempo, vislumbra a ideia de mudar sua vida. Essa vontade muda, quando retorna para casa e enxerga o amor que sente pela família que formou. Isso, retoma o título do conto, apontando que, apesar dos desejos, sonhos deixados para traz e frustrações com a rotina, o que a move, segue sendo o amor e toda a complexidade de sentimentos que se desencadeia por conta dele.

 

Com a presente análise, conclui-se que as temáticas das obras se assemelham ao retratar o cotidiano de duas mulheres, mas diferem quanto à realidade social em que vivem. Ambas as obras apresentam um forte teor realista e uma tensão com o meio social, abordando profundas reflexões desencadeadas, principalmente pelo meio social exposto na narrativa. As reflexões nos contos, acontecem de acordo com a realidade vivida por cada personagem: Ana, uma mãe e dona de casa de classe média, que apesar de ter uma vida estável, ainda assim, cumpre as expectativas referente ao papel social da mulher: casamento, filhos e família. Mas que, ao sair do seu estado de alienação, sonha, divaga sobre seu antigo eu, uma realidade diferente da sua, em que não está fadada ao casamento e tudo o que esse lhe impõe. Já na obra de Conceição Evaristo, a personagem narradora sequer ter um nome, é referida como a filha mais velha de sete irmãs. É descrita como uma mulher negra, marginalizada, e que ao tentar se lembrar da cor dos olhos de sua mãe, começa a relembrar de sua árdua infância e como essas dificuldades ainda estão presentes em sua realidade.


Análise feita pelas professoras

Ana Karoline Pereira dos Santos

Danielle Evangelista Oliveira



BIBLIOGRAFIA

 

BRANDINHO, Luiza. CONCEIÇÃO EVARISTO. Brasil Escola, 2018. Disponível em: < https://brasilescola.uol.com.br/literatura/conceicao-evaristo.htm> Acesso em: 24/10/2021.

 

DAVID,Bruna. Delirium Nerd, 2021. Disponível em <https://deliriumnerd.com/2021/03/10/olhos-dagua-conceicao-evaristo-resenha/> Acesso em: 25/10/2021.

 

DUARTE, Eduardo de Assis. Literatura Afro-brasileira, um conceito em construção. AFOLABI, N. BARBOSA, M. , RIBEIRO, E. (Org.) A mente afro-brasileira. Trenton - EUA / Asmara - Eritréia: África World Press, 2007.

 

EVARISTO, Conceição. Olhos D’água. Rio de Janeiro: Pallas: Fundação Biblioteca Nacional, 2015.

 

HALBWACHS, Maurice. A memória coletiva. São Paulo: Vértice, 1990.

 

CÂNDIDO, Antônio. No raiar de Clarice Lispector. In: CANDIDO, A. Vários escritos. São Paulo: Duas cidades, 1970. p. 123-131.

 

LISPECTOR, Clarice. AMOR. In: Lispector, Clarice, Laços de Família. 11. Ed. Rio de Janeiro. José Olympio, 1979.

 

NUNES, Benedito. A forma do conto; O itinerário místico de G.H In: NUNES, Benedito. O drama da linguagem: uma leitura de Clarice Lispector. 2. ed. São Paulo: Ática, 1989.

 

NUNES, Benedito. A narração desarvorada. Cadernos de Literatura Brasileira, Instituto Moreira Salles, São Paulo, números 17 e 18, dez.2004. p. 292-301.

 

RIBEIRO, Daniele.Letra e Luz, 2016. Disponível em: <http://letraeluzbydanieleribeiro.blogspot.com/2016/11/analise-literaria-olhos-dagua-de.html> Acesso em: 24/10/2021.

 

SOARES, Cael. Nave literária, 2015. Disponível em: <http://www.naveliteratura.com/2015/11/analise-de-olhos-dagua-de-conceicao.html> Acesso em: 25/10/2021.

 

junho 27, 2018

De tudo o que nos cerca;



 A gente nunca consegue prever o impacto que está por vir, quando de repente cruzamos com alguém. O que vem depois do simples "olá", o que vem depois da amizade, da primeira briga, do primeiro beijo, do primeiro adeus... Como carregar o peso da efemeridade em suas costas? Quando o impacto que alguém causou foi tão forte, que quando partem, nos deixam sem saber quem realmente somos. 

 E eu me pergunto constantemente: quem sou, afinal de contas? 
 Pode ser que eu seja cada brincadeira de pique-pega da minha infância, ou o amor que recebi dos meus pais, posso ser o reflexo das proibições que tive durante a vida, as regras que segui ou até mesmo os riscos que corri tentando quebrá-las e acredito ainda, ser um pouco dele e do seu beijo, dos seus gostos literários e de sua risada despretensiosa. Pode ser que eu seja um pouco do sorriso que recebi de uma criança na rua, das festas que aproveitei ou dos amigos que fiz e cada tombo que levei. 
 São tantas as possibilidades. 

 Não sei dizer se algum dia seremos realmente capazes de ter a mínima ideia de quem somos, mas sei que agora, eu sigo me questionando cada vez mais, tentando achar repostas para perguntas matematicamente impossíveis de serem respondidas e acreditando em algumas mentiras que eu mesma inventei, para que assim talvez haja algum sentido. Porque apesar de o destino mostrar a cada dia que tudo não passa de um gigantesco e ininterrupto efeito borboleta, a esperança intrínseca do meu ser, se agarra a qualquer ponta de estabilidade que acalente a minha desesperada vontade de acreditar que sim, existe um porque
 Talvez o sentido da nossa existência esteja nessa busca constante. Talvez o sentido esteja em não conseguir encontrá-lo, mas não desistir de buscar e atribuir infinitos significados a ele. 

 Você pode acreditar que o significado talvez esteja no amor, e meses depois descobrir que aquilo sequer devia ser chamado de amor e depositar todo esse significado em uma viagem incrível para o exterior. Quem poderá dizer que você está errado? Pessoas são pequenos universos efêmeros e em constante movimento, cada um com seu ponto de vista. E no final quem muito afirma se conhecer, se limita e se fecha para novas possibilidades. Possibilidades. Passageiras. Sempre efêmeras.
 Se são efêmeras e tão únicas, por que perdê-las? Você nunca tem a mesma chance duas vezes, mas o que importa é que enquanto houver vida, elas existirão, basta um pequeno esforço para que sejam notadas. 
 E de todas as mentiras que tenho inventado, a que me cabe agora é acreditar que não sou nada além de vestígios de pessoas que passaram por mim. Não sou nada além disso, mas sei que posso ser mais por estar atenta as infinitas possibilidades de apenas ser. Ver a beleza nisso tudo e reconhecer o mesmo no próximo é o que nos faz ser tão seres humanos e ser tão incríveis na tão pequena vastidão que preenche cada um de nós.  


novembro 20, 2017

Brasileiros e o 'complexo de vira-lata'.

  O conceito da autoestima é comumente relacionado á um âmbito mais pessoal, mas o sintoma da baixo autoestima, infelizmente, espalhou-se como um vírus por todo o Brasil. O que poderia explicar esse fenômeno? Em meio a crise política, instabilidade no mercado de trabalho somado a descrença nos que ministram os setores públicos, manter-se uma pessoa positiva e esperançosa acaba se tornando uma tarefa árdua. 
  Aliás, este sentimento de inferioridade em face ao resto do mundo, falta de credibilidade nos potenciais individuais e do país, é algo tão presente e notável que têm sua própria terminologia. É o famoso complexo de vira-lata. Termo esse, criado pelo jornalista Nelson Rodrigues, que define o brasileiro como um 'narcisista as avessas'. 
  Um reflexo desse sentimento atualmente, é a quantidade de acessos que os denominados 'youtubers' gringos atingem e o alcance da fama repentina, quando lançam conteúdos sobre o Brasil. Essa necessidade de aprovação  e  auto-crítica constantes e a baixa autoestima nacional acaba tendo como consequência o desinteresse em problemas sociais ou até mesmo a paralisia frente a situações adversas do cotidiano.   
  A supervalorização da cultura Americana e padrões de beleza Europeu, podem ser considerados um dos percursores desse sentimento. É claro que ser um país multicultural e ter uma grande admiração por outras culturas não é o problema, o problema está em anular e menosprezar a própria cultura, superiorizando culturas estrangeiras. 
  O primeiro passo para auto-aceitação e valorização é o conhecimento. Quanto mais for possível saber sobre nossa história e cultura, fica mais fácil de enxergar qual a verdadeira riqueza do Brasil. A disciplina sociedade e cultura, não devia ser restrita apenas a alguns cursos de graduação. A implantação dessa disciplina pelo MEC, proporcionaria um estudo mais aprofundado da cultura brasileira, promovendo mudanças graduais mas efetivas. 
  Além disso, é necessário entender que não é reclamando, muito menos cuspindo na própria bandeira que trará soluções para os problemas do Brasil. É preciso entender também que até países de primeiro mundo tem suas mazelas sociais, tem suas falhas e corrupções e que o 'país das maravilhas', sequer existe em conto de fadas e não passou de um devaneio, um sonho utópico da menina Alice.   

novembro 12, 2017

Acabou, boa sorte.


 Sabe, sonhei com você. Noite passada e na anterior também. Pra falar a verdade, quase todas as noites, você vem me visitar com aquele ar de simplicidade e amizade, me olhar profundamente como fazia quando estávamos juntos, a inocência no seu olhar, me traz uma paz, mesmo em sonhos e não importa quanto tempo faz.
  Tive medo ao acordar, ao ver que tudo não passou de um breve devaneio. Cair na realidade é sempre a pior parte. Lembrar que não te tenho mais aqui e voltar a sentir o que antes eu havia sentido, parar pra refletir, de novo, de novo e de novo, incansavelmente... Onde foi que eu errei? Onde erramos? E não conseguir chegar a uma conclusão ou chegar a uma conclusão que pra mim, é tão difícil de aceitar.
 "Sei que a tua pele já promove em outros, outras sensações..." é, Ana Muller é que há de me entender. Mas deixa, o tempo há de colocar cada um em seu devido lugar. Tento não citar musicas, mas ainda há tantas que lembram você. Prometo essa é a última vez, mesmo sabendo o quanto vai ser difícil de cumprir e como corro risco de quebrar essa promessa, ainda assim, tenho de prometer. A vida tem que seguir, seja com ou sem você por perto de mim. Antes te ver feliz que a sofrer de saudade de mim, igual eu tô de você. Essa dor eu não quero pra ninguém no mundo, imagina pra você. 
Mais uma música. Essa você conhece bem, não é mesmo?
 É tanta pergunta sem resposta e eu fiz o mesmo de novo. Me desculpa. Te desejo sorte. 

Seja leve, mulher.



      Ás vezes o segredo é só ser leve. Amanhã é sempre um novo dia, o sol sempre nasce de novo e nem tudo que acontece na vida é o fim do mundo. Pode ser o fim de um ciclo e quem sabe, um novo recomeço? E se for mesmo o fim do mundo (???) deixa ele acabar e simbora dançar.
Dançar descalça. Sem vergonha. Desnuda a alma, que quando ela tá nua, irradia a beleza por você todinha mulher. Esse brilho escondido por traz de seus olhos cansados e os caracóis de seu cabelo, mostra pra mim. Mostra pra ele. Mostra pra todos e inclusive pra quem um dia quis te derrubar. Joga fora todo o peso que um dia descarregaram em cima de seus magros ombros bronzeados. Eu mereço ver esse sorriso branco-leite estampado no rosto, e você merece ser feliz, mais que feliz, feliz pra cachorro. Você não deve nada a ninguém e merece ser mais feliz do que um dia já almejou ser.