Este estudo tem por objetivo
a realização de uma análise comparativa entre as obras “Amor” de Clarice
Lispector e "Olhos d’água" de Conceição Evaristo, a fim de
estabelecer quais as diferenças e semelhanças entre os nexos temáticos abordados
nos contos. Para a fundamentação teórica, serão utilizadas as obras: “No
raiar de Clarice Lispector” de Antônio Cândido, “A narração desarvorada” de
Benedito Nunes, “O drama da
linguagem: uma leitura de Clarice Lispector” de Benedito Nunes “Literatura Afro-brasileira, um conceito em construção” de Eduardo de Assis Duarte e “A memória coletiva”
de Maurice Halbwachs.
O conto “Amor” está
inserido na obra “Laços de Família”, que foi publicada em 1960. O conto é o relato de uma longa
introspecção, no qual retrata um episódio trivial da vida de uma pessoa comum,
que perante uma situação cotidiana, sofre uma epifania que traz profundas
reflexões sobre si mesma e o mundo que a rodeia. O conto possui narração em
terceira pessoa, com narrador onisciente, que tem acesso a emoções sentimentos
e monólogos inteiros, apresentando “a vida introspectiva, num grau paroxístico
que leva ao paradoxo na linguagem” (NUNES, 1989 p. 298).
Toda a trama gira em torno de Ana, a
protagonista, uma mãe, esposa e dona de casa que ocupa o tempo cuidando de sua
família e das tarefas domésticas. O conto apresenta
outras personagens como o filho de Ana, o marido e o homem cego que ela enxerga
através da janela do bonde, mas Ana é a única a quem a autora atribui uma densidade
psicológica. Dessa forma, no decorrer do conto é possível acompanhar os
vários estados de espírito de Ana, principalmente após ter uma epifania
enquanto estava no bonde, a caminho de sua casa.
As obras de Clarice
Lispector representam uma ruptura nas condições de produção literária, que é
uma tendência na Literatura Brasileira no século XIX em diante: há uma
tendência narrativa mais realista, assim como há também a construção de uma
tensão do sujeito com o meio social. A crítica tecida por Antônio Cândido é
justamente a de que, até então, faltava uma inovação na maneira de trazer essa
relação da tensão entre o sujeito e o meio social, Cândido afirmava haver um
“conformismo estilístico” no pensamento literário. (CANDIDO, p. 125). Para
Cândido:
[...] Numa literatura, enquanto não se estabelecer um movimento de
pensar efetivamente o material verbal; enquanto não se passar da afetividade e
da observação para a síntese de ambos, que se processa na inteligência, — não será possível encará-la do ângulo das produções feitas para
permanecer [...] Para que a literatura brasileira se torne grande, é preciso
que o pensamento afine a língua e a língua sugira o pensamento por ela afinado.
Uma corrente dupla, de que saem as obras-primas e sem a qual dificilmente se
chega a uma visão profunda e vasta da vida dentro da literatura. (1970, p.
126):
Clarice,
não apenas transforma o sujeito em tensão, expandindo as formas de construir
essas relações, mas difunde essa tensão no âmbito psicológico. Em
“amor”, esses elementos podem ser notados no seguinte trecho:
Sua precaução reduzia-se a
tomar cuidado na hora perigosa da tarde, quando a casa estava vazia sem
precisar mais dela, o sol alto, cada membro da família distribuído nas suas
funções. Olhando os móveis limpos, seu coração se apertava um pouco em
espanto. [...] Saía então para fazer compras ou levar objetos para consertar,
cuidando do lar e da família à revelia deles. Quando voltasse era o fim da
tarde e as crianças vindas do colégio exigiam-na. Assim chegaria à noite, com
sua tranquila vibração. De manhã acordaria aureolada pelos calmos deveres.
Encontrava os móveis de novo empoeirados e sujos, como se voltassem
arrependidos. (LISPECTOR, 1960, p. 11)
No trecho acima, é possível
notar que há uma reflexão sobre a angústia cotidiana e a inquietação em meio a
monotonia da rotina, acentuando o monocentrismo da narrativa e seu caráter introspectivo:
“Sua precaução reduzia-se a tomar cuidado na hora perigosa da tarde [...]”,
“seu coração apertava um pouco em espanto”; a “hora perigosa”,
traz uma tensão e altera o estado de espírito da personagem. Essa hora refere-se
ao momento em que encerramos as atividades banais que ressignificamos para que
haja uma “aceitação”, mesmo que momentânea da vida que levamos; é o momento que
temos uma pausa de todo o automatismo que a rotina nos envolve, e temos tempo
para encarar tudo o que o (in)consciente reprime e dissipa ao ocuparmos as
horas: o fardo que o gênero feminino nos impõe, sonhos que foram deixados para
trás, frustrações, decepções, desejos e tudo o que toca no âmago da nossa
existência.
Vale ressaltar, que a autora
usa da prosopopeia, recurso poético que tem a finalidade de personificar seres
inanimados; dessa forma, ao atribuir características humanas, como a capacidade
de oferecer perigo, a hora parece ter vida própria. Assim, a “hora
perigosa” chega como um fantasma, trazendo temores e ânsias, e o peso do vazio
que sempre vai existir, por mais que ocupemos todas as horas de nossos dias,
numa falha tentativa de fuga dessa verdade que nos atinge e muitas vezes,
assombra. Usando de recursos poéticos, a obra apresenta reflexões profundas, “no qual parece abolir-se a distinção
entre prosa e poesia [...]” (NUNES, 2004, p. 299) e que é narrada num “fluxo
verbal contínuo, sucessão de fragmentos da alma e do mundo” (NUNES, 2004, p.
299).
Esses elementos
psicológicos, quando apareciam anteriormente, eram apresentados através do
narrador, para contar o que acontece interiormente e exteriormente, de maneira
separada: a narrativa era interrompida, quando o interior ia ser revelado.
No conto de Clarice, os
elementos psicológicos são apresentados do início ao fim da obra, através do fluxo
de consciência, usando uma estratégia que mistura as narrações, não
havendo assim, divisão de mundo interno e mundo externo: “No fundo, Ana sempre tivera necessidade de
sentir a raiz firme das coisas. E isso um lar perplexamente lhe dera. Por
caminhos tortos, viera a cair num destino de mulher, com a surpresa de
nele caber como se o tivesse inventado.”
(LISPECTOR, 1960, p. 11); “sentir a raiz firme das coisas”
refere-se a como Ana dedica a sua vida em família e como busca manter a ordem e
o controle das coisas.
Quando refere-se ao “destino de mulher”, Ana denuncia não
se reconhecer mais na pessoa que fora antes de se casar; e que ao emergir do
torpor da monotonia, descobre que “sem a felicidade se vivia” (LISPECTOR, 1960,
p. 11), que em troca da “exaltação perturbada que tantas vezes se confundira
com felicidade” (LISPECTOR, 1960, p. 11) da vida que vivera antes, havia sido
substituída por uma “vida de adulto” em que, Ana assume uma responsabilidade
por suas escolhas, mas reconhecendo que, apesar das escolhas, a ela era
relegado um destino, uma função, um papel comum ao seu gênero. Assim, as narrativas internas e externas são
entrelaçadas, não fica claro quando o narrador está entrando no mundo interno
da personagem.
É essa mistura de vozes que
revoluciona a técnica narrativa da prosa brasileira, que segundo Cândido:
A autora (ao que parece uma jovem estreante) colocou seriamente o
problema do estilo e da expressão [...] Sentiu que existe uma certa densidade
afetiva e intelectual que não é possível exprimir se não procurarmos quebrar os
quadros da rotina e criar imagens novas, novos torneios, associações diferentes
e mais fundamente sentidas. (CÂNDIDO, 1970, p. 128)
Em “Amor”, “a descoberta do
cotidiano é uma aventura sempre possível, e o seu milagre, uma transfiguração
que abre caminho para mundos novos.” (CÂNDIDO, 1970, p.128). Um traço comum que
vale salientar nas personagens de Clarice, seria a “violência represada dos
sentimentos primários e destrutivos – cólera, ira, raiva, ódio – que
subitamente explodem.” (NUNES, 1989, p. 103):
Ele mascava goma na
escuridão. Sem sofrimento, com os olhos abertos. O movimento da mastigação
fazia-o parecer sorrir e de repente deixar de sorrir, sorrir e deixar de sorrir
— como se ele a tivesse insultado, Ana olhava-o. E quem a visse teria
a impressão de uma mulher com ódio. Mas continuava a olhá-lo, cada vez mais
inclinada — o bonde deu uma arrancada súbita jogando-a desprevenida para trás,
o pesado saco de tricô despencou-se do colo, ruiu no chão — Ana deu um grito, o
condutor deu ordem de parada antes de saber do que se tratava — o bonde
estacou, os passageiros olharam assustados. (LISPECTOR, 1960, p.12)
Após as
compras do jantar, quando se preparava para retomar a rotina, a visão de um
homem cego mascando chiclete, a leva a ter uma epifania: a imagem que faz parte
da vida cotidiana causa em Ana um efeito estarrecedor, o que a leva a derrubar
as compras. Ela observava o homem, com um olhar que “quem a visse teria a
impressão de uma mulher com ódio” (LISPECTOR, 1960, p. 12) pois a
simples existência desse homem cego, veio a confrontar a alienação
costumeira de Ana, com o quão dura a vida pode ser, mostrando um sentimento
primário de raiva e ressentimento. Esse momento quebra a barreira que Ana havia
construído desde o casamento, colocando-a de frente com a vida e sua “falta
de sentido”, mostrando que apesar de tentar, Ana jamais teria o controle
das coisas. Em seu regresso a casa, permanece com a ânsia gerada pela epifania,
de maneira que a vida que levava, deixava de ser aceitável e parecia um “modo
moralmente louco de viver”:
A vida é horrível, disse-lhe baixo, faminta. O que faria se seguisse o
chamado do cego? Iria sozinha... Havia lugares pobres e ricos que precisavam
dela. Ela precisava deles... Tenho medo, disse. Sentia as costelas delicadas da
criança entre os braços, ouviu o seu choro assustado. Mamãe, chamou o menino.
Afastou-o, olhou aquele rosto, seu coração crispou-se. Não deixe mamãe
te esquecer, disse-lhe. (LISPECTOR, 1960,p. 14)
Nesse
trecho, Ana subverte o imaginário popular da palavra amor, que dá título ao
conto, mostrando que
[...] esses
sentimentos fortes e violentos, que polarizam a vida afetiva estão sujeitos a
bruscas transformações. A cólera é o reverso do amor. Tormentoso, tirânico e
maligno, o amor traz sempre uma “vontade de ódio”, e o ódio, uma vontade de
amor. (NUNES, 1989, p. 103)
Mais tarde,
a protagonista reflete sobre a sua família e recupera seu estado de alienação,
recuperando a sensação de conforto habitual:
Riam-se de
tudo com o coração bom e humano. As crianças cresciam
admiravelmente em torno deles. E como uma borboleta, Ana prendeu o
instante entre os dedos antes que ele nunca mais fosse seu. (LISPECTOR, 1960,
p. 15)
O trecho
anterior, marca mais uma vez o caráter poético da prosa de Clarice Lispector: “E
como uma borboleta, Ana prendeu o instante entre os dedos antes que ele não
fosse seu”, usando das figuras de linguagem, comparação e prosopopeia, o
trecho mostra assim, que apesar da vida ser horrível as vezes, ainda é possível
ver beleza no mundo, se afinarmos nosso olhar a delicadeza das coisas. Assim,
tentava guardar em sua memória o momento que lhe trouxe alegria e segurança,
aceitava a precariedade da vida, tomando consciência sobre a efemeridade de
tudo que amava e se afunda novamente alienação costumeira: “Penteava-se agora
diante do espelho, por um instante sem nenhum mundo no coração.”,
deixando seu coração leve e dissipando da mente o enxergar de si mesma.
Conceição
Evaristo é uma grande figura da literatura contemporânea, suas obras relatam a
vivência de mulheres negras e as reflexões acerca das profundas desigualdades
raciais brasileiras. Misturando realidade e ficção, suas obras trazem retratos
do cotidiano, denúncias da desigualdade de gênero e raça, e também aborda a
recuperação da ancestralidade da negritude brasileira. Citando Eduardo de Assis
Duarte:
[...] não basta
ser afrodescendente ou simplesmente utilizar-se do tema. É necessária a
assunção de uma perspectiva e, mesmo, de uma visão de mundo identificada à
história, à cultura, logo a toda problemática inerente à vida desse importante
segmento da população. (2007, p. 12)
Este trabalho
analisará sua obra “Olhos d’água”, em específico o primeiro conto que dá título
ao livro. Publicado em 2014, o livro tem 116 páginas e é composto por 15 contos
- são eles: Olhos d’água, Ana Davenga, Duzu-Querença, Maria, Quantos filhos
Natalina teve? Beijo na face, Luamanda, O cooper de Cida, Zaíta esqueceu de
guardar os brinquedos, Di lixão, Lumbiá, Os amores de Kimbá, Ei,Ardoca, A gente
combinamos de não morrer e Ayoluwa, a alegria do nosso povo- onde, cada conto
evidencia a violência urbana que atinge mulheres negras e expõe suas rotinas de
miséria e exclusão social.
No título Olhos
D’água, Conceição utiliza-se da imagem dos olhos para fixar um centro de
poeticidade para a história, é por meio dessa imagem que se desperta na
narradora as lembranças de sua dolorosa infância, relatando o sofrimento de uma
mãe, negra e pobre, que fazia sacrifícios para cuidar dos filhos. A grande
questão da filha era “qual a cor dos olhos de minha mãe” e é com base
nesta dúvida, que o conto é construído. Narrado em primeira pessoa, a
narradora-personagem é uma das sete filhas desta mulher: "Sendo a primeira
de sete filhas, desde cedo busquei dar conta de minhas próprias dificuldades,
cresci rápido, passando por uma breve adolescência." (EVARISTO, 2015, p.
16)
Ao se relembrar
e narrar suas memórias, a personagem acaba confundindo suas vivências com as
lembranças de sua mãe:
[...] Às vezes, as
histórias da infância de minha mãe confundiam-se com as de minha própria
infância. Lembro-me de que muitas vezes, quando a mãe cozinhava, da panela
subia cheiro algum. Era como se cozinhasse, ali, apenas o nosso desesperado
desejo de alimento. (EVARISTO, 2015, p,16).
Conceição
Evaristo reforça que a desigualdade social é um problema que acaba sendo
herdado pelas gerações futuras. É possível dialogar com Maurice Halbwachs nessa
fusão de memórias da narradora e de sua mãe, segundo Halbwachs, só nos
lembramos daquilo que ainda faz sentido dentro do grupo social ao qual
pertencemos no presente, só conservamos uma lembrança se ainda nos identificamos
com este:
Não é suficiente
reconstituir peça por peça a imagem de um acontecimento do passado para se
obter uma lembrança. É necessário que esta reconstrução se opere a partir de
dados ou de noções comuns que se encontram tanto no nosso espírito como no dos
outro, porque elas passam incessantemente desses para aquele e reciprocamente,
o que só é possível se fizeram e continuam a fazer parte de uma mesma
sociedade. (1990, p. 34).
Comum na Obra de Conceição
Evaristo, a herança da geração seguinte revela-se um traço aos seus ancestrais,
como uma conexão estabelecida com passado e futuro que se concretiza no
desfecho do conto, no momento em que em frente à filha a narradora brinca de
buscar a verdadeira cor de seus olhos:
[...] Hoje, quando
já alcancei a cor dos olhos de minha mãe, tento descobrir a cor dos olhos de
minha filha. Faço a brincadeira em que os olhos de uma são o espelho dos olhos
da outra. E um dia desses me surpreendi com um gesto de minha menina. Quando
nós duas estávamos nesse doce jogo, ela tocou suavemente o meu rosto, me
contemplando intensamente. E, enquanto jogava o olhar dela no meu, perguntou
baixinho, mas tão baixinho como se fosse uma pergunta que para ela mesma, ou
como estivesse buscando ou encontrando a revelação de um mistério ou de um
grande segredo. Eu escutei quando, sussurrando, minha filha falou: Mãe, qual é
a cor tão úmida de seus olhos? (EVARISTO, 2015, p.19)
Ainda
sobre a busca de identidade, a narradora recorda das integrantes de sua
família, e de sua ancestralidade desde a África:
Havia anos que eu
estava fora de minha cidade natal. Saíra de minha casa em busca de melhor
condição de vida para mim e para minha família: ela e minhas irmãs tinham
ficado para trás. Mas eu nunca esquecera a minha mãe. Reconhecia a importância
dela na minha vida, não só dela, mas de minhas tias e todas as mulheres de
minha família. E também, já naquela época, eu entoava cantos de louvor a todas
as nossas ancestrais, que desde a África vinham arando a terra da vida com suas
próprias mãos, palavras e sangue. Não, eu não esqueço essas senhoras, nossas
Yabás, donas de tantas sabedorias. (EVARISTO, 2015 p. 18)
A reflexão
acerca da cor dos olhos de sua mãe é uma forma de buscar a identidade perdida
da personagem, retornando a suas origens, somente descobrindo a cor dos olhos
de sua mãe, a personagem conseguirá descobrir a si mesma. Uma das características
marcantes no conto, é a poeticidade que se dá a partir da presença da imagem do
olho, que vai se fortalecendo nas repetições, o que ocasiona as recordações da
narradora de sua infância. É por meio da indagação “de que cor eram os olhos
de minha mãe?” que Conceição fixa a imagem dos olhos como eixo da
narrativa.
Com o uso da linguagem
poética, a autora integra o aspecto da violência ao enredo, Conceição consegue
apresentar cenas de profundo impacto aos leitores de uma forma “sutil”, com
leveza em suas palavras, mas, mesmo com o uso deste “brutalismo poético” não se
apaga as dificuldades e sofrimentos narrados pela personagem: “Era como se
cozinhasse, ali, apenas o nosso desesperado desejo de alimento. [...]” (EVARISTO, 2015, p.16). A
musicalidade também é um elemento importante no conto, como em: “Chovia,
chorava! Chorava, chovia!” (EVARISTO, 2015, p. 18). Outro recurso
estilístico utilizado no enredo, é a escrita que se baseia na hifenização das
palavras, este recurso recebe o nome de palavras siamesas: “lava-lava” e
“passa-passa” (p. 16).
O tema central do conto
"Olhos d’água " é a desigualdade social. A autora retrata situações
que fazem parte do cotidiano da personagem, sendo esta a filha mais velha de
sete irmãs, é implícito as responsabilidades que já assumia na infância: "Cresci
rápido, passando por uma breve adolescência " (EVARISTO 2015 p. ?). A
alegria era um sentimento pouquíssimo conhecido: " Prenúncio de
possíveis alegrias" (EVARISTO, 2015 p.). O enredo mostra que direitos
básicos - como alimentação - eram negados a sua família: "[...] fervia
panela cheia de fome [...]" (EVARISTO, 2015 p.), sendo assim, tece
reflexões profundas sobre a desigualdade racial brasileira, e como esta é
herdada de geração a geração. Mas, além das denúncias acerca da desigualdade, a
autora não foca apenas em vitimizar a personagem, ela a torna protagonista de
sua própria história, e se volta para a recuperação de sua ancestralidade da
negritude a qual pertence:
A maior parte de qualquer presente é feita de passado. A história
[...] é em grande medida continuidade. Faz parte de seu complexo peso material
não poder ser constantemente remodelada. E, mesmo quando conseguimos
transformá-la de fato, podemos perceber que seu peso repousa como um pesadelo
no cérebro dos vivos (2006, p. 45).
Os pontos de referência do
horizonte de Clarice Lispector são “autoconhecimento e expressão, existência e
liberdade, contemplação e ação, linguagem e realidade, o eu e o mundo,
conhecimento das coisas e relações intersubjetivas [...]” (NUNES, 1989,
) Ana simboliza a dona de casa de classe média, que assim como muitas mulheres,
cumpre as expectativas sociais que são impostas por seu gênero: casar, ter
filhos e cuidar dos afazeres domésticos; essas questões referentes a classe
social e papéis de gêneros já pré-estabelecidos em sociedade, desvelam uma
temática marcadamente existencial. No entanto esse relacionamento com o existencialismo
sartriano não interfere diretamente nos aspectos que são peculiares de sua
criação literária. (NUNES, 1989, p.100) Segundo Benedito Nunes:
[...] É existencial a temática que
lhe serve de arcabouço. Mas o sentido global que essa totalidade significativa
oferece já diverge – e largamente – quer da filosofia da existência centrada em
torno da ideia da existência como realidade fáctica, quer do
existencialismo propriamente dito [...] A divergência está na perspectiva
mística que prevalece afinal e redimensiona os nexos temáticos formadores
da concepção do mundo de Clarice Lispector – nexos que começam a ser repensados
e desfeitos [...] onde a temática da obra reflui. (NUNES, 1989, p. 100,101)
A imagem do cego mascando
chiclete, de maneira mecânica e no escuro, parece uma metáfora para a forma
alienada que Ana levava sua vida, repetindo uma rotina mecânica. Ao ter
essa epifania, ela acaba então, quebrando essa rotina, e por um tempo,
vislumbra a ideia de mudar sua vida. Essa vontade muda, quando retorna para
casa e enxerga o amor que sente pela família que formou. Isso, retoma o título
do conto, apontando que, apesar dos desejos, sonhos deixados para traz e
frustrações com a rotina, o que a move, segue sendo o amor e toda a
complexidade de sentimentos que se desencadeia por conta dele.
Com a presente análise,
conclui-se que as temáticas das obras se assemelham ao retratar o cotidiano de
duas mulheres, mas diferem quanto à realidade social em que vivem. Ambas as
obras apresentam um forte teor realista e uma tensão com o meio social,
abordando profundas reflexões desencadeadas, principalmente pelo meio social
exposto na narrativa. As reflexões nos contos, acontecem de acordo com a
realidade vivida por cada personagem: Ana, uma mãe e dona de casa de classe
média, que apesar de ter uma vida estável, ainda assim, cumpre as expectativas
referente ao papel social da mulher: casamento, filhos e família. Mas que, ao
sair do seu estado de alienação, sonha, divaga sobre seu antigo eu, uma
realidade diferente da sua, em que não está fadada ao casamento e tudo o que
esse lhe impõe. Já na obra de Conceição Evaristo, a personagem narradora sequer
ter um nome, é referida como a filha mais velha de sete irmãs. É descrita como
uma mulher negra, marginalizada, e que ao tentar se lembrar da cor dos olhos de
sua mãe, começa a relembrar de sua árdua infância e como essas dificuldades
ainda estão presentes em sua realidade.
Análise feita pelas professoras
Ana Karoline Pereira dos Santos
Danielle Evangelista Oliveira
BIBLIOGRAFIA
BRANDINHO, Luiza. CONCEIÇÃO
EVARISTO. Brasil Escola, 2018. Disponível em: < https://brasilescola.uol.com.br/literatura/conceicao-evaristo.htm>
Acesso em: 24/10/2021.
DAVID,Bruna. Delirium Nerd, 2021. Disponível em <https://deliriumnerd.com/2021/03/10/olhos-dagua-conceicao-evaristo-resenha/> Acesso em: 25/10/2021.
DUARTE,
Eduardo de Assis. Literatura Afro-brasileira, um conceito em construção.
AFOLABI, N. BARBOSA, M. , RIBEIRO, E. (Org.) A mente afro-brasileira.
Trenton - EUA / Asmara - Eritréia: África World Press, 2007.
EVARISTO,
Conceição. Olhos D’água. Rio de Janeiro: Pallas: Fundação Biblioteca Nacional,
2015.
HALBWACHS,
Maurice. A memória coletiva. São Paulo: Vértice, 1990.
CÂNDIDO, Antônio. No raiar
de Clarice Lispector. In: CANDIDO, A. Vários escritos. São Paulo: Duas cidades,
1970. p. 123-131.
LISPECTOR, Clarice. AMOR. In:
Lispector, Clarice, Laços de Família. 11. Ed. Rio de Janeiro. José Olympio,
1979.
NUNES, Benedito. A forma do conto; O
itinerário místico de G.H In: NUNES, Benedito. O drama da linguagem: uma
leitura de Clarice Lispector. 2. ed. São Paulo: Ática, 1989.
NUNES,
Benedito. A narração desarvorada. Cadernos de Literatura Brasileira, Instituto
Moreira Salles, São Paulo, números 17 e 18, dez.2004. p. 292-301.
RIBEIRO, Daniele.Letra e
Luz, 2016. Disponível em:
<http://letraeluzbydanieleribeiro.blogspot.com/2016/11/analise-literaria-olhos-dagua-de.html>
Acesso em: 24/10/2021.
SOARES,
Cael. Nave literária, 2015. Disponível em:
<http://www.naveliteratura.com/2015/11/analise-de-olhos-dagua-de-conceicao.html>
Acesso em: 25/10/2021.